Autor: José Carlos Buzanello Publicado na Tribuna do Advogado, Julho de 1998.
A objeção de consciência militar no Brasil é um direito, em regra, desconhecido pelos advogados e demais operadores jurídicos, seja quanto a legislação pertinente ou quanto a escassa doutrina. O presente artigo pretende contribuir para o esclarecimento desse direito constitucional, demonstrando sucintamente alguns aspectos jurídicos e as práticas possíveis. A discussão da objeção de consciência, nos leva a problematizar até onde é possível e administrável a desobrigação jurídica dentro do Estado de Direito, provocada pelo exercício das liberdades públicas, assente nos direitos fundamentais da Constituição Brasileira.
A liberdade de consciência constitui o núcleo de partida para a fundamentação da objeção de consciência. A questão de consciência, sob o ponto de vista jurídico, significa a soma de motivos alegados por alguém, a fim de desonerar-se da obrigação que lhe é imposta, ou evite a responsabilidade do ato jurídico, que lhe é atribuída.
Além da questão ética, o objetor deve invocar uma questão de convicção filosófica ou política como imperativo de consciência. O que vem a ser essa alegação de consciência? Toma-se algo difícil de aferir, pois o objetor de consciência, geralmente, invoca razões morais e religiosas. A obrigação jurídica não implica absolutamente a atribuição de um valor moral à todas as leis, caso contrário, a objeção de consciência se intensifica para a desobediência civil. Esse tipo de violação à obrigação jurídica do Estado é caracterizada por um teor de consciência razoável e de pouca publicidade, objetivando, no máximo, um tratamento alternativo da lei.
A objeção de consciência não tem uma estrutura política e jurídica única no mundo, sendo adotada de forma particular em cada Estado, sendo que uns dão destaque constitucional, outros, apenas em leis ordinárias ou por simples decisão judicial. Destacamos alguns países que reconhecem a objeção de consciência, além do Brasil: Estados Unidos da América, França, Itália, Espanha, Portugal e Alemanha.
A Constituição Federal de 1988 manteve a obrigatoriedade do serviço militar inicial que alcança todos os brasileiros, natos e naturalizados, mas como regra de exceção possibilitou a prestação militar alternativa, mediante simples alegação de objeção de consciência, permanecendo, contudo, obrigatório o alistamento militar dos jovens conscritos. O Brasil constitucionalizou a objeção de consciência como direito fundamental, em duas perspectivas: primeiro, enquanto escusa genérica de consciência no art. 5°, VIII, e, segundo, enquanto escusa restritiva ao serviço militar no art. 143, § 1°, da Constituição Federal, respectivamente, in verbis:
Art. 5". Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...), nos termos seguintes: VIII- ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Art. 143. 0 serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1° À" Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativos de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar".
A regulamentação infraconstitucional está expressa em dois atos normativos: primeiro, na Lei 8.239, de 04 de outubro de 1991, que dispõe sobre a prestação de Serviço Alternativo ao Serviço Militar Obrigatório; segundo, na Portaria EMFA N" 2.681, de 05 de agosto de 1992, do Chefe do Estado Maior das Forças Armadas. A Lei 8.239/91 conceitua o serviço alternativo como exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às de caráter essencialmente militar, compreendendo um período de dezoito meses. O serviço alternativo, independentemente do tipo do seu exercício, tem natureza jurídica militar; por esta razão subordina-se à legislação militar pertinente.
O serviço militar alternativo deve ser requerido ao Presidente da Comissão de Apreciação dos Requerimentos da Região Militar (ou do Distrito Naval ou do Comando Aéreo Regional), a que pertencer o Município onde o convocado foi alistado, alegando por escrito as razões de imperativo de consciência. A vinculação ao Serviço
Alternativo terá início com a entrega da Declaração de Imperativo de Consciência, anexa ao requerimento, para atribuição de vaga ao exercício de determinada profissão ou área de serviço. A seleção será realizada segundo os aspectos físicos, culturais, psicológicos e moral dos convocados. Terão prioridade na matrícula do Serviço Alternativo, os voluntários, os refratários, os que se encontram em débito com o Serviço Militar Militar Obrigatório ou Alternativo e os brasileiros naturalizados, desde que educados no Brasil. Serão dispensados da seleção para o Serviço Alternativo os residentes há mais de um ano em Município Não Tributário, ou em zona rural de Município somente tributário de Formação de Reservas, os excedentes, os operários e, os arrimos de família.
O serviço alternativo poderá ser recusado pelo optante convocado. O objetor, neste caso, se recusa à prestação alternativa ou não o completa por motivo que deu causa; novamente peticiona à autoridade militar competente e terá, como pena a suspensão dos direitos políticos, punição amparada no art. 15, IV, da Constituição Federal. O convocado ou optante que se recusa ao Serviço Alternativo terá de volta o respectivo Certificado de Alistamento Militar (CAM), com a devida anotação, válido por dois anos. Ao término desse prazo, a autoridade militar o encaminhará ao Juiz Eleitoral competente para processar e julgar a suspensão dos direitos políticos, e o fará publicar no Diário Oficial.
A suspensão dos direitos políticos se dará por sentença judicial eleitoral e importa na perda temporária de dois anos da cidadania política, deixa de ser eleitor ou torna-se inalistável e fica privado de todos os direitos fundados na qualidade de eleitor. Esta privação despoja a pessoa dos atributos de cidadão, atingindo o status activae civitatis.
O restabelecimento do serviço militar se dará após dois anos da suspensão dos direitos políticos do inadimplente que poderá, a qualquer tempo, regularizar sua situação, mediante cumprimento das obrigações devidas (art. 4a. §§ 1°, 2°, da Lei 8.239/91), onde receberá o Certificado de Recusa de Prestação do Serviço Alternativo.
A objeção de consciência não se apresenta contra as normas sociais, e sim, contra a determinada obrigação jurídica. Dentre os ângulos de visão político-jurídica, a controvérsia sobre a justificação do objeção da consciência reflete com certeza uma determinação de limites diferentes do direito do Estado e da sociedade. Quem admite uma flexibilidade parcial da obrigação jurídica, imediatamente incorpora a objeção de consciência ao sistema jurídico como instrumento de solução de conflitos sociais.
A justificação jurídica tem origem jusnaturalista, que soergue a supremacia do indivíduo sobre o Estado, informado por alguns direitos natos. A prevaricação do Estado ou o não-cumprimento do dever, a que está obrigado em razão de sua natureza, é uma premissa necessária para não instaurar o reino da justiça e da liberdade. A justificação política traz a idéia da autonomia da liberdade individual que se antepõe a toda forma de poder sobre o homem, especialmente o poder do Estado. Liberdade particular e ordem pública fazem parte dessa relação, sendo ambas formadoras de uma equação complexa, antinômica, da organização social e política.
A inaplicabilidade da objeção de consciência militar no Brasil (o art. 143, § 1°, CF e a Lei 8.239/91), se deve, de um lado, ao absoluto desconhecimento desse direito por parte dos operadores do direito e da sociedade civil e, de outro lado, no despreparo por parte das Unidades Militares em aceitar e administrar esse complexo direito fundamental, quanto aos aspectos teóricos e quanto às práticas possíveis.
Os Estados Nacionais, inclusive o Brasil, têm diminuído o número de conscritos, em regra, por duas razões: primeira, com o fim da guerra fria houve uma redefinição dos papéis das forças armadas em favor da profissionalização e uma seleção restrita de oficiais qualificados, tendo, por conseqüência, a absoluta diminuição de serviços e quantidade de soldados; segunda, e por decorrência da primeira, a respectiva diminuição das receitas orçamentárias, já que os Estados perderam a capacidade de investimento militar, em face da crise fiscal. Em nível ilustrativo, em 1992, na l" Região Militar que compreende os Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, foram alistados cerca de 120.000 (cento e vinte mil) homens, sendo incorporados dezessete mil, menos de quinze por cento. Neste raciocínio, julgamos mais defensável, neste quadrante da história, tornar o recrutamento militar voluntário e profissionalizante, adequado à política de defesa nacional e, ser substituído, gradativamente, por um serviço civil obrigatório.